DANÇAS EM MAIO

BLITZ 25 May 1993Portuguese

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O SpringDance Festival, um dos mais importantes festivais de dança do norte da Europa, mudou de figurino. Um retrato – incompleto – do evento. O SpringDance, que se realiza anualmente na cidade holandesa de Utrecht, de há muito mantém uma relação estreia com Portugal. Seu principal director, George Brugmans, foi co-programador dos Encontros Acarte no tempo ainda de Madalena Perdigão. Recentemente, os laços do festival com Portugal reforçaram-se quando da constituição do Tejo Trust, uma estrutura que se completa com a de Klapstuk Festival (Leuven, Bélgica) e o Fórum Dança (Lisboa) e que tem por objectivo produzir durante quatro anos quatro novas obras de coreógrafos portugueses (a primeira será de Vera Mantero). Nas duas últimas edições, o SpringDance resolveu opor à sua tradicional programação dita “experimental”, a que se deu o nome de Voorland e cujo objectivo primeiro seja o de dar espaço aos coreógrafos “jovens”. Neste convidava as coreógrafas portuguesas Vera Mantero e Joana Providência a partilharem um programa de uma noite. Antecipava-se à “descoberta” maciça da “nova dança portuguesa” por outros programadores europeus.
O facto é que, apesar das intenções, o formato Voorland versus Consagrados criava uma desarmonia dentro do festival, desarmonia essa que se agudizava quando na prática os critérios de selecção dos espectáculos a apresentar no Voorland seriam mais de orçamento e de duração das obras do que de qualidade artística e/ou experiência profissional. Assim, obras maduras de coreógrafos já experimentados eram colocadas lado a lado com trabalhos muitas vezes nas raias do mau amadorismo apenas por uma questão de gestão de tempo. Uma coisa era certa, no entanto: se havia algo que dava identidade ao SpringDance, por entre a apresentação dos espectáculos das grandes companhias que acabam por estar mais ou menos em todo o lado, era sem dúvida o Voorland.
Este ano, com o convite feito a Bruno Verbergt, director do Klapstuk, para programar esta edição do Springdance (e também a de 1994), o corte com o passado foi feito e o conceito deste ano foi: “O Springdance é agora o Voorland”, segundo me disse Verbergt.
Para bem ou para mal, a minha ultra-curta e concentrada estadia em Utrecht não pôde avaliar. Mas é bom quando se tem pelo mundo a intenção de abrir novos caminhos. E eis o que foi visto...


1. Saburo Teshigawara, Bones in Pages

Cada vez mais a ideia de cenário como instalação se imiscui na prática coreográfica contemporânea. Em Bones in Pages, dueto para bailarino e corvo, coreografado e interpretado pelo japonês Saburo Teshigawara, esta ideia é levada a uma explicitação tão clara quanto bela na construção não apenas de um espaço onde decorre uma dança mas de um microcosmos densamente povoado de significações que, por existir, torna-se o principal construtor da dança que nele ocorre.
Quatro paredes, uma delas transparente para que se possibilite o nosso olhar invasor, enclausuraram o bailarino de negro e o corvo de asas cortadas: co-habitantes espectaculares. Livros às centenas se amontoam no chão, mais livros alinham-se, abertos – lembram árvores cortadas; ou uma selva de calcário por uma das paredes. Do lado oposto, no chão, centenas de pares de sapatos, alinhados, na nossa direcção. Mesa com vidros estilhaçados. Caixas de plexiglas cortando a simetria. Clausura, acumulação: de gente (em fantasma), de saber (morto, encerrado), de palavras, de vazio, de tudo. Neste ambiente o corpo ora desarticulado, ora mecânico, e sempre virtuoso de Teshigawara movimenta-se em uníssono duvidoso com a música, em estilismo exibicionista que os passos de ballet e a grandiosidade sinfónica acentuam. Estilo e precisão, precisão e estilo. Mas a música alterna-se com percussão electrónica, sons de vidros a estilhaçar.
No enclausuramento metaforizado não deixo de projectar um outro: daquele que representa o seu lugar no mundo da arte – agente de uma certa visão do palco como lugar da grandiosidade extravagante (onde se inclui a grandiosidade financeira de produção). Aqui o corvo é também espelho: também ele condicionado; também ele de asas cortadas.


2. Vera Mantero, Perphaps she could dance first and think afterwards

O solo improvisado de Vera Mantero, apresentado em Lisboa há poucas semanas pela primeira vez, após quase dois anos de digressão pela Europa fora, teve uma forte colaboração minha na sua feitura. Então, fica de fora a crítica. Só algumas questões, em lista e não resolvidas, que o espectáculo inaugural me colocou. Sobre o que significa realmente “improvisar” quando se trata de fazer um mesmo espectáculo vezes sem conta; qual a importância e o peso cristalizador da forma, numa dança em que o centro é um estado de espírito eventualmente já sem sentido para a bailarina. E ainda uma outra pergunta, essa de antecipação cheia de expectativa: que nova formulação da dança irá Vera Mantero nos dar quando estrear em Outubro em Lisboa a sua nova coreografia? Aqui, sem dúvida, a minha intuição diz algo de estranhamente selvagem. E belo.


3. Angels Margarit, Corol. 1ª

Como parecem tão distantes e antiquíssimos os últimos dois ou três anos da década de oitenta, em que Anne Teresa de Keersmaeker colocava, com a sua companhia Rosas, metade das candidatas a coreógrafa do mundo a rodopiar as suas saias com ar matreiro, centrados em si mesmas, bracinhos ao ar, e ancas a ondular. Como é estranho ver Corol. lª, de Angels Margarit, um solo dançado pela própria ,em que esta linguagem é tomada em primeiro grau, sem reflexão, sem reconhecimento da sua história. Como é estranho ver uma mulher optar por se apresentar assim neste mundo e dizer isto é arte. Como é estranho ver que o público adora e que para muitos ver dança é ainda valorizar no palco a ideia de grandiosidade, feminilidade, virtuosismo e boniteza (linearidade, clareza, harmonia, luminosidade de conteúdo: na música, no cenário, na dança): herança do ballet.
Angels Margarit é uma bailarina espantosa, uma mulher bonita e uma coreógrafa de estilo burguês, no pior sentido da palavra. Como é estranho o sucesso!