ENCONTROS ACARTE: TÁBUA DE SALVAÇÃO

BLITZ 1 Sep 1992Portuguese

item doc

In BLITZ no409, September 1st, 1992 Os Encontros Acarte iniciam-se com um espectáculo de teatro nos jardins de Belém, frente ao Tejo. Símbolo da sua nova orientação: aberta ao Mundo, ou da situação do circuito de apresentação de dança em Portugal: prestes a afogar-se? Os Encontros Acarte começaram por ser de “teatro-dança europeu”, sob a égide de Madalena Perdigão. Com a evolução do próprio teatro-dança, ou da dança-teatro, ou simplesmente da dança (a reformulação que a dança europeia sofreu nos anos oitenta, inspirando-se no universo teatral, torna a expressão “teatro-dança” redundante quando associado ao contexto geográfico em causa), aconteceu o que é inevitável acontecer aos rótulos: envelhecer pela simples transformação do objecto definido. Os Encontros acompanharam na sua semântica a nova realidade e tornaram-se então de “teatro e dança da Europa”. Compreensível. A dança-teatro existia ainda como género, e provavelmente continuará a existir, mas alguns coreógrafos europeus pareciam voltar a interessar-se numa linguagem mais centrada no movimento – uma afirmação identária.
A edição deste ano dos Encontros Acarte marca, no entanto, uma ruptura de facto com a tradição e especificidade que o festival reivindicava no contexto internacional. Ruptura anunciada na sua designação, Encontros Acarte’92 – apenas assim, sem subtítulo – e que a programação esclarece, ao abrir-se pela primeira vez a companhias não europeias. Este é um momento importante na história deste festival, e dele faço pretexto para algumas observações.
Não sei o que terá levado José Sasportes, director do Serviço Acarte, a esta abertura dos Encontros ao resto do mundo. Pelo que tenho tido oportunidade de ver em alguns festivais e teatros europeus que apresentam programação regular de dança, é certo que circulam neste momento por essa Europa fora uma quantidade impossível de obras indescritivelmente enfadonhas e desnecessárias à Humanidade de uma maneira geral. Porém, o certo é que há igualmente muito bom trabalho de criadores europeus e que ainda não se apresentaram nos Encontros, para não falar daqueles que já o tendo feito, não mais voltaram a Portugal com peças mais recentes. (O que deixa o público sem a possibilidade de presenciar o processo de construção de uma obra, de uma identidade de autor, o que seria fundamental para a sua correcta formação).
Repito, não sei o que terá levado José Sasportes a abrir as portas do seu festival. Descrédito pela actual dança europeia, problemas de programação, ou simplesmente vontade de ampliar o diálogo entre tradições distintas? A estas perguntas, o decorrer do próprio festival inevitavelmente se encarregará de responder, à medida que o diálogo entre as diferentes obras programadas se for ou não estabelecendo. Mas, o certo é que, ao fazê-lo, lançou um alerta, talvez inadvertidamente, mas que não podemos ignorar: a saber, que a programação dos Encontros Acarte é neste momento, para o amante da dança, para o crítico, para o profissional – bailarino, coreógrafo, cenógrafo, músico – no contexto indigente da apresentação de espectáculos cénicos em Portugal, não uma mera opção de um director de festival, mas assume o aspecto absurdo de uma tábua de salvação.
Com o Centro Cultural de Belém inactivo e sem perspectivas animadoras (pensando bem, a coisa está de tal modo que as perspectivas não são sequer desanimadoras, são nulas) quanto à sua utilização como espaço alternativo para a apresentação de espectáculos de dança, com a política governamental de apoio de apresentação e produção de dança nacional inexistente, com a anulação desastrada da edição de 1992 dessa promessa para um pólo alternativo de produção e apresentação de dança que foi a Bienal Universitária de Coimbra’90 (onde, lembre-se, se estrearam mais de uma dúzia de coreografias nacionais abrindo assim as portas a uma geração de jovens coreógrafos a uma carreira internacional, via Europália e Festival Klapstuk’91), os Encontros Acarte voltam a ser, e de forma gritante, volvidas que são já seis edições, o último baluarte em Portugal de uma das mais importantes formas de expressão artística da contemporaneidade, europeia e não europeia.
Neste contexto desolador, uma das primeiras consequências é a posição um tanto absurda do crítico em avaliar a validade da programação dos Encontros. Se a cada obra individual apresentada é possível avaliá-la e criticá-la, à ideia de Festival, a coisa perde sentido para o amante de dança: vai-se porque não há outra alternativa. Logo, o conceito de valor desaparece, uma vez que valor, por definição, exige um sistema de oposições, um estar em relação, em comparação. E os termos de comparação são, neste momento, neste país, nulos (e a comparação com um “lá fora” parecendo-me impossível, tamanhas são as diferenças conjunturais).
Assim, chegamos ao ponto triste de ter de dizer que qualquer orientação que se dê aos Encontros Acarte (do neoclássico ao folclore), fará sempre uns bons Encontros Acarte, não fazendo necessariamente um bom festival de dança. O que é mau para o público, para os criadores, para os críticos e, finalmente, para os próprios Encontros. Existem e é meramente nessa insistência que encontra validade. Se uma nova orientação me dá a hipótese de ver a Meredith Monk, em vez da novíssima geração de coreógrafos norte-americanos (Lacey, Kriekhaus, Guergué, O’Connor) o que seria talvez mais arrojado, informativo e interessante, não há nada a mais a dizer do que: “é aproveitar”. Porque só mesmo o Altíssimo sabe quando haverá uma próxima oportunidade. Aproveitemos, assim, estes novos Encontros.
Para não acabar em tom de enterro, e um festival em princípio é uma festa, deixo-vos com algumas sugestões do que para mim será o melhor dos Encontros: Josef Nadj, Meredith Monk, Anne de Mey. Para os que buscam o choque cultural, vale a pena ir ver a Orquestra de Marimbas e Bailarinos Chopi, Moçambique, e ainda a arte teatral indiana com Annette Leday/Kely. Finalmente, atenção para a única presença portuguesa, a de João Fiadeiro e da sua Companhia Re.Al, com uma nova produção.