SPRINGDANCE’92: O PEIXE ESTRANHO
In BLITZ no395, May 26th, 1992 Dezasseis coreógrafos/companhias de todo o mundo, 28 espectáculos em nove dias, espalhados por quatro salas e um corredor (!) em Utrecht, no coração da Holanda. É o SpringDance Festival em mais uma edição. O BLlTZ acompanhou o projecto Voorland, um festival dentro do festival consagrado aos novos criadores, este ano na sua segunda edição. Mas viu também Pieter de Ruiter e a antestreia mundial da última obra dos DV8 encomendada para a Expo’92. Falamos deles hoje. Para a semana há Voorland.
1. Peter de Ruiter
O “Princípio de Peter” é aquele axioma famoso que enuncia o disparate inerente (mesmo que bem intencionado) ao funcionamento dos aparelhos burocráticos, a saber: as pessoas extremamente competentes num determinado cargo devem ser promovidas para um cargo superior, acarretando, ao contrário do que se pretendia, não um acréscimo de competência num nível mais alto, mas a expansão do potencial de mediocridade, incompetência, ou mais simplesmente, da falta de preparação técnica por parte do promovido para o novo cargo a desempenhar.
Todos nós sabemos de algum caso que cai dentro do Princípio de Peter. O que já é mais difícil de conceber é quando alguém que demonstra sérias incapacidades para executar uma tarefa vê a sua mediocridade ser recompensada com a promoção hierárquica. Ora, foi precisamente isto que se passou com o coreógrafo holandês Peter de Ruiter entre o Springdance’91 (vão à colecção ver os artigos que então escrevi) e a edição deste ano.
Em 1991 De Ruiter surgia com uma obra inclassificável no âmbito do projecto Voorland (a programação dentro do festival própria para a apresentação de obras de coreógrafos em início de carreira). Em 92 o Festival produz uma obra sua de longa duração para o programa principal e anuncia-o como a “enticing revelation” do ano passado. Confesso que fui ver de pé atrás e fiquei pasmo.
Os princípios (estéticos) de Peter (de Ruiter) aparecem deslocados no contexto geral do Festival. EisenNerz é uma coreografia de sonho para qualquer companhia de reportório: o academismo da linguagem é na base do “bom com distinção”, as exigências técnicas aos bailarinos são de nível “alto” requerendo uma formação sólida em clássico (dois dos bailarinos são membros da Companhia Nacional Holandesa). Há ainda uma sugestão de história q.b. para prender o público. Bom, é preciso dizer que em princípio não há nada de negativo com tudo isto. A dança contemporânea é multifacetada e apresenta objectos provenientes de diferentes tradições, em circuitos de apresentação diversos. A arte brota em todo o lado. Por outro lado, a recuperação de técnicas e linguagens clássicas e das estruturas narrativas estão mesmo no cerne de obras revolucionárias dentro da Nova Dança (serão mesmo um dos seus traços distintivos) como é o caso dos trabalhos de Jan Fabre, só para dar um exemplo.
O problema reside no tratamento dado a estas tradições bem como na honestidade dos criadores. (Honestidade é, cada vez mais, um termo que surge nas discussões entre artistas e críticos na apreciação das obras. Foi um termo central nesta edição do Voorland e falaremos dele.) Quando se utiliza uma certa linguagem e uma certa tradição por mera questão de busca de respeitabilidade estética (e aqui o clássico é o escudo protector) e a ela mescla-se uma outra para garantir o estatuto de autor contemporâneo, inovador e provocativo, a coisa fica no plano do simulacro e o objecto final um amontoar de lugares-comuns pronto a agradar a gregos e a troianos.
Este o problema de EisenNerz. Uma coreografia sem raízes, apenas com superfície, onde o bonito, o movimento bem definido, os corpos belos, a envolvência cénica, ressoam a algo de oco. E entorpecedoramente monótono.
Num cenário magnífico de Niek Kortekaas, que utilizando andaimes divide a cena em dois planos sobrepostos, os bailarinos, todos eles excelentes, desfiam em continuados duetos as conotações primárias e ultraliterais que o coreógrafo estabelece entre sexo/submundo/violência/nazismo, ao som da música de Bo Verspaendonk – percussão, voz e metais ao vivo. No programa explicam-nos que se trata de uma acção passada num “gloomy underworld”. “Gloomy” é de certeza, graças ao desenho de luzes, e mais uma vez o cenário e luzes de Kortekaas são os únicos elementos de metaforização inteligente em todo o espectáculo, em nada aproveitados dramática ou coreograficamente durante toda a peça. “Underworld” também, uma vez que os bailarinos estão sempre no plano inferior do cenário. Já está feito o boneco. Como o que “está em baixo” é por definição, feio e o é porque sexual, então eles são maus e sexualmente provocativos (ou vice-versa). Mas como se trata de ballet a provocação assume-se como videoclip da sensualidade pop-teenager. É uma peça linda para os jovens de sucesso. À saída, uma colega holandesa comentava comigo: a beleza é uma prostituta: serve a todos.
2. O peixe estranho dos DV8
Água por todo o lado, mesmo sob o palco, camuflada, água que pinga do lavatório e enche um quarto afogando a velhinha que está lá dentro, calhaus de rio que escorrem do cenário que lembra os edifícios espectrais de Max Ernst, uma enorme cruz à direita do palco. Um Cristo crucificado com uma voz de sereia e seios descobertos (o Cristo é uma mulher, explicitando a essência da sua natureza), os homens e as mulheres desesperados em querer serem amados, a voz de Melanie Pappenheim pontuando ao vivo momentos chave da peça (é ela o Cristo), um humor delirante, total entrosamento entre teatro, dança e mais alguma coisa que não é nem um nem outro, é movimento e verbo, eis Strange Fish, o último trabalho dos DV8 Physical Theatre.
Dois registos marcam a peça. Por um lado, um começo e um fim fortemente marcados pelo simbolismo da figura do Cristo, momentos em que o palco se escurece para deixar apenas vislumbrar a imagem imponente da cruz, e o corpo branco e nu de Pappenheim cuja voz enche a sala com sonoridades evocativas dos cantos da Igreja Bizantina. O poder plástico e metafórico destas duas situações é esmagador. Entre estes dois momentos, o palco ilumina-se e entrega-se ao histrionismo (Nigel Charnock é excelente na cena da festa) e virtuosismo dos actores-bailarinos (Jordi Cortes-Molina executa uma dança de sedução absolutamente genial), num bom humor que não apenas contrasta como é chocante com os quadros que iniciam e encerram a peça. A mim, esta transição chocante incomodou-me um pouco, como se de algum modo Lloyd Newson tivesse optado por não ir muito ao fundo das (inteligentes) sugestões heréticas que propunha e se voltasse para uma linguagem em que já provou ter excelente controlo, jogando pelo seguro.
Agora que penso sobre o assunto creio que Lloyd Newson nada evitou e construiu magistralmente uma parábola sobre a paixão situada entre o non-sense (vemos em palco e ao vivo sketches e gags dignos dos desenhos animados do Tex Avery), a dramatização do desespero solitário, e uma poética da solidão.
Tudo é poético. No fim Cristo/mulher desce da cruz e mergulha nas águas (e o Peixe, lembre-se, é um dos símbolos do Cristo). A última imagem de Strange Fish mostra Wendy Houstou rodeada pela escuridão a caminhar em desequilíbrio sobre frágeis taças de vinho (mesmo verdadeiras – de vidro e com pé): nada exprime melhor a fragilidade e solidão de viver num mundo cada vez mais estilhaçado.