VERA DE MÃOS VAZIAS
In BLITZ no391, April 28th, 1992 O comboio vai a caminho de Lille. Vamos dar o espectáculo final de uma mini-tournée em França com o solo Perhaps she could dance first and think afterwards. Conversando e rindo, lá vou tentando fazer uma entrevista. Uma entrevista “a sério” é impossível: não só ela não deixa, porque, como diz, “está farta de respostas muito bonitas às perguntas de sempre”, como ainda por cima “não me leva a sério”. Mas o que ela pensa e diz é sério. Vera Mantero vive agora em França, onde trabalha na companhia de Catherine Diverrès. Um dia, quando vivermos num país onde haja verdadeira política cultural, pode ser que em algum lado, alguém se lembre em mostrar dança contemporânea portuguesa e então talvez se veja a sua arte por cá (com a de outros coreógrafos, já agora). Nesse dia, acho que esta entrevista vai ser útil para compreendermos o que é a sua dança. Porque se a técnica e o engenho da arte de bem interrogar faltam ao entrevistador, a amizade ainda é o melhor que há para soltar a língua:
V. M.: Eu não quero falar das danças nem do caraças! Olha, uma coisa com que eu ando a flipar completamente é com o excesso de palavras, de discurso. Uma coisa que eu gostei imenso de ler outro dia, foi um artigo de um senhor que falava do “pronto-a-pensar”, como analogia ao pronto-a-vestir. Era uma crítica ao filme do Jean-Jacques Annaud, L’Amant, tirado do livro da. Marguerite Duras (parece que ela não gostou nada do filme). Este senhor tinha odiado completamente o filme, odeia o Annaud e falava no excesso de discurso, o “pronto-a-pensar”, que é: toda a gente tem acesso a todas as ideias, pode pegar em livros, artigos, filmes, agarrar deste modo numa série de fórmulas e conceitos e começar a botar discurso, citando Marx e Freud e Mallarmé e quem mais vier ou convier e nada no fundo quer dizer nada, é tudo muito conspurcado... Neste momento, estou com a sensação de que é preciso estar calado! Percebes? É preciso estar muito calado e muito quieto para se conseguir fazer um gesto de jeito ou para se dizer uma palavra de jeito... Já não posso ouvir mais nada. Há muito ruído... Mas ao mesmo tempo sinto-me a fazer isso, sinto-me um bocado a fazer isso... Mas esse silêncio, a sensação de não haver nada é muito importante: há uma grande exposição numa pessoa que vem assim de mãos vazias ter contigo, vem com nada. Eu acho que essa sensação que se tem é parecida com a sensação de plenitude por paradoxal que isso possa parecer. Acho que quando se fica muito impressionado com uma obra é porque há um despojamento. Essa nudez, apresentar-se nu às pessoas, é uma maneira – enquanto performer e mesmo enquanto espectadora, penso eu – de se chegar ao “artístico”. Por exemplo, na dança, já agora, para cair em contradição e falar de dança, falar de “ideias para coreografias” é uma coisa que eu abomino. Repara, eu também tenho ideias para peças mas detesto que se pense em ideias para peças no sentido de “isto é espertinho”, percebes, ou “isto mostra como eu sou inteligente”, ou “vou ter a ideia mais inteligente do ano e ganhar um concurso, as pessoas vão dizer que esta ideia é muito boa”...
A. L.: Tipo o Atzavara da Angels Margarit: “o atzavara é um fruto que floresce uma vez a cada cem anos; façamos uma dança a celebrar este tema tão poético”. Ou aqueles temas mais intelectuais: “o Ego se espelha no narcisismo do corpo: f(r)a(c)talismo ou pós-modernidade? (risos)
V. M.: Sim, acho que sim. As pessoas estão interessadas em fazer com que os outros percebam que elas tiveram uma boa ideia, ou boas ideias em quantidade, quando não é esta a questão da arte, porque a arte não serve para nada se não falarmos da questão da existência. No fundo é tudo uma questão de honestidade, das ideias que se têm passarem por uma experiência pessoal verdadeira – física ou psicológica ou as duas – mas uma experiência que crie essas ideias. É preciso que se sinta as ideias, em vez de se ficar só por uma coisa conceptual, exterior a ti, e que tu dizes, A mais B vai dar um C interessante. Isso pode até ser muito interessante mas temos de chegar a um nível supremo de não se saber nada, que é muito mais interessante. Sair do curso normal das coisas, não saber de todo onde é que vamos chegar, ultrapassarmos todos os tipos de perguntas que já se sabe quais são as respostas...
A. L.: Mas há coisas conceptuais interessantes... V. M.: As coisas conceptuais se são interessantes é porque passam por uma experiência interior do criador, algo que se passa dentro da pessoa e que a leva àquela conclusão. Não é por um olhar exterior em que um gajo diz “aquilo vai ficar muita giro” e pisca o olho. Eu consigo distinguir os espertinhos na dança, mas por exemplo, o Barton Fink era um bocado espertinho... Aquele papel de parede a descolar...
Ainda em relação ao cinema, o Depardieu está a promover aquele ciclo sobre o John Cassavetes em Paris e uma coisa que eu gosto muito no Cassavetes é que eu acho que ele consegue essa honestidade, essa qualidade. Ele diz: “já que nada existe, já que a vida não é nada, que tudo é absurdo, então vou desbundar e fazer estas coisas”. Ele não diz “vou fazer cinema”; ele diz: “vou desbundar com estes materiais que tenho”. E acho que esse é o grande trunfo dele. Apesar de não gostar do que ele diz – acho que sou a única pessoa que não gosta do que ele diz – gosto muito de como ele o diz. Porque diz “não há nada”, despoja-se, e faz uma coisa não porque vai “fazer cinema”, não porque tem aquela ideia “espertinha” de cinema, mas porque lança-se a fazer o que sair, e tem uma liberdade do caraças a fazer aquilo que faz... Está-se nas tintas para os códigos e para as convenções do que é ou deve ser “cinema”...
Estás a perceber? Quando eu digo que é preciso eliminar o ruído, estar calado, é a mesma coisa. Quando eu digo eliminar o ruído e apresentar-se ao público de mãos vazias, é a mesma coisa, sair daquele ruído, daquelas coisas todas que são da confusão terrena, da confusão das coisas corriqueiras e passar a um plano mais essencial. Ao despojarmo-nos chegamos mais facilmente a algo de essencial, deixa-se de estar ali a fingir. É preciso tocar todos os dias na essência das coisas.
A. L.: Como é que consegues isso? V. M.: Olha, tenho lá em casa uma caixinha com um electrão lá dentro... (gargalhadas)... Todos os dias toco nele... (gargalhadas altíssimas que põem a carruagem toda a olhar para nós).
A. L.: Não achas que as pessoas vão ler isto e achar que estás a armar-te em boa? V. M.: Então não podem achar? Podem achar muito pretensioso! Olha, uma coisa que podes dizer ao público: sou muito chata! (risos) Sou chata até dizer chega, estou sempre a criticar as pessoas, os franceses já não podem comigo, eu também já não posso comigo... Isto podes dizer... Podes dizer também que a vida é uma grande mentira! (gargalhadas) A sério! É verdade!...
A. L.: Bom, mesmo assim sinto que depois de um período de grandes dúvidas agora voltas a acreditar mais na dança outra vez...
V. M.: Acho que sim... Mas acho que se acredito deve ser porque não estou a pensar bem, não estou a ver muito bem a coisa... (risos)