JOÃO FIADEIRO: CAIR NA RE.AL
Recebeu recentemente o primeiro Prémio Madalena Perdigão, dará uma série de espectáculos no Institut Franco-Portugais – estreando em Portugal a coreografia apresentada no Klapstuk’91 – e anuncia a formação de uma companhia, a RE.AL. É João Fiadeiro e falou-nos dos seus inúmeros projectos. Aqui fica o retrato do coreógrafo.
1. Círculo vicioso
J. F.: Para qualquer estratégia que tu tenhas a nível de futuro é necessário teres uma base e teres uma base é evitares que as coisas sejam efémeras. Essa é a verdadeira base. Para provocar continuidade é impossível que na tua próxima obra não estejam mais ou menos as mesmas pessoas que estiveram envolvidas na tua obra anterior. Daí, para manter essas pessoas tenho de lhes pagar, para pagar tenho de circular com as obras, para circular tenho de... circular (risos). Ao circular e se só circular não vou ter tempo para criar se as pessoas forem diferentes. Ao serem as mesmas, eu monto a obra, está feita, e mesmo que eu passe três meses a circular com a obra, durante o dia estou a trabalhar na próxima. No fundo é o que se faz, é o que os outros grupos fazem e o meu objectivo é mais ou menos esse, criar um círculo vicioso que permita pagar a sua própria existência: através dos espectáculos que eu já fiz, por um lado, e através dos futuros espectáculos – não se pode manter a existência de algo sólido sem dar aos bailarinos, mesmo que não haja dinheiro logo, a perspectiva de que as coisas estão a acontecer. No fundo o que se passa é que não se pode esperar que as coisas aconteçam para depois de elas acontecerem pensar-se então em qual é a melhor forma de prolongar a coisa. Há que prever. Há que antecipar a questão. A criação da RE.AL vai ao encontro desta necessidade de haver uma continuidade.
2. Big hit
A. L.: O Retrato da Memória Enquanto Peso Morto vai apresentar-se pela primeira vez lá fora, no Théatre de la Bastille... J. F.: Bom, o Retrato... já é uma peça que eu sei mais ou menos o efeito que vai dar. Paris já sei mais ou menos o que vai ser, não vai ser um big hit, mas também... quer dizer, vai ser aquilo que eu quero que seja, ou seja, as pessoas vão ter a noção de que existe ali um talento e um trabalho...
A. L.: Mas porque é que não vai ser um big hit? J. F.: Não vai ser porque não é uma peça tipo big hit. É uma peça que não só todas as pessoas com quem eu tenho falado sobre ela mas mesmo eu próprio, ao ver a peça, apercebo-me que a peça é isto: é a coreografia de uma pessoa que teve uma coisa para dizer, disse, resulta, há ali coisas muito interessantes mas que têm de ser aprofundadas...
A. L.: Como é que justificas então o prémio que ela recebeu? J. F.: Acho que ganhei o prémio porque... O prémio em si, acho que é excepcionalmente relativo. É uma “conjectura” (gargalhadas). Se fosse outro o júri, outros críticos, o prémio seria para outro. Aliás eu disse isso quando agradeci o prémio: disse que podia ser eu o premiado como outra pessoa qualquer. Sendo eu, sinto-me um pouco como o representante de um movimento que está a receber um prémio. Agora, de qualquer forma, agrada-me que no júri estivessem pessoas ligadas ao teatro, que fossem pessoas mais ou menos fora do esquema dos críticos de dança e agrada-me saber que foi mais ou menos por unanimidade. Mas acho que tem tudo a ver com um momento muito específico, a minha peça é uma peça com mais impacte, tem muita gente, é num convento, essas coisas... Provoca mais impacte... Não estou a dizer que não ache que mereça, eu até acho que mereço, nem mais nem menos, “acho que sim”. Primeiro fiquei surpreendido mas depois ao ver quem estava no júri, quais eram as outras peças estreadas...
3. O futuro, a Arte...
A. L.: Pergunta clássica: então e agora? J. F.: Vou começar a trabalhar em Fevereiro no estúdio a remontar o Retrato..., mas a começar já a coreografar a próxima peça que vai ser para o Acarte. Como te estava a explicar há bocado, recusei a proposta do José Sasportes para Março, que era uma data muito próxima. Propus que fosse uma data mais tarde e neste momento estamos a negociar quando vai ser e há fortes possibilidades de ser nos Encontros Acarte, o que é muito bom porque faço a digressão do Retrato... (Paris, La Rochelle, Alemanha) e em Setembro tenho logo outra peça para circular. Espero que o próximo ano seja um ano só de circulação das obras que existem, e de estruturação das bases da companhia.
A. L.: E a Arte? (risos) J. F.: Perguntas bem, e a arte? Olha, estou a fazer esta peça que vai ter um grupo de pessoas muito giro a colaborar nela. Para já tem os mesmos cinco bailarinos (Ofélia Cardoso, Ângela Guerreiro, Sílvia Real, Nuno Bizarro e o eu próprio), tem o João Lucas novamente na música, tem a Marta Wengorovius, juntamente com o Filipe Alarcão, na cenografia. Resolvi ter duas pessoas na cenografia: uma mais “prática”, outra mais “plástica”, porque para além de eu sentir-me muito “plástico” no produto final das minhas peças, acontece também que para muitas coisas que eu pretendo explorar com cordas, com puxar, com ímanes, eu preciso de alguém que as saiba pôr a funcionar... mas principalmente os dois dão-se muito bem e isso é fundamental. Há ainda a Eduarda Abbondanza nos figurinos e toda essa gente se conhece, fazem uma equipa coesa que já me conhece. Então o que é que eu resolvi para a estrutura da peça? Em vez de ser eu a tentar inventar um mundo, fui à procura de gajos que já o tenham feito (risos) e que tenham de alguma forma falado de coisas que eu falo – de emoções, de sensações, etc. Desta vez agarrei-me a uma coisa muito real e que tivesse a ver comigo. Por acaso, muito por acaso, estava a ler muita coisa e leio este título A Realidade é Real? do Paul Watzlawick e disse “é isto!”. Não quer dizer que me vá basear no livro, não vou, mas tudo aquilo que ele fala, reflexos condicionados, a confusão, a comunicação, a desinformação, os códigos, o facto de a comunicação sensorial ser privilegiada em relação à verbal... Tudo isto fascinou-me. Não tenho dúvida nenhuma de que o produto final vai ser completamente diferente do que o livro propõe, mas o que eu preciso é de um estímulo muito forte...
Agora, acho que vou fazer uma peça muito próxima do Retrato..., a nível de impacte e de todas as coisas que me são caras, com tudo isto que eu disse. Mas vai ser mais do que o Retrato..., não só porque já tenho mais bagagem, não só porque já fiz o “anti-retrato”. Eu acho que o dueto (apresentado no Klapstuk’91 e a estrear brevemente no Institut Franco Portugais) é o anti-retrato e pela negação encontrei muitas coisas mas principalmente porque agora tenho uma base muito forte. Mas é óbvio também que será uma peça que terá muitas coisas do dueto, penso eu, muitas coisas que eu descobri com o dueto, percebes?
A. L.: O que é que descobriste? J. F.: Uma certa calma. Acho que descobri uma certa calma... Dar tempo às coisas para que as coisas aconteçam.