ASPECTOS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA: O PROBLEMA DO CONTEXTO
Decorreu na Sala Polivalente do CAM a quinta edição dos Aspectos da Dança Contemporânea, uma iniciativa do Acarte. Convenhamos: o contexto, claro está, não é tudo. Mas é muito. Principalmente no cada vez mais fragmentário universo da produção artística contemporânea, onde o emolduramento das obras num quadro de referências qualquer parece tornar-se cada vez mais um imperativo aos apresentadores. Neste estado de coisas a dança contemporânea não é excepção: a ruptura cada vez maior dos coreógrafos com as grandes correntes estéticas ligadas a escolas e técnicas, assumindo-se eles próprios como os criadores dessas mesmas técnicas e linguagens, novos modos de pensar e fazer dança, faz com que um enquadramento qualquer, que reduza de certa maneira a entropia nos miolos do espectador incauto, deva ser minimamente introduzido quando da apresentação de diferentes obras num ciclo ou num programa ou num festival ou numa mostra. Sabe-se que a nova direcção do Acarte tem optado abertamente pela posição contrária a esta, ou seja, a de pretender apresentar tudo e mais alguma coisa com a intenção de dar ao espectador uma visão global do que se passa na Europa (Encontros Acarte) e no mundo (Aspectos da Dança) em termos de dança. Se a intenção é boa, a tarefa é, pelos motivos explicados à partida, inglória e pode levar a desinformação ou, no mínimo, a desequilíbrios, ou ainda, no máximo, a injustiças.
Todo este discurso por causa do espectáculo que abriu a mostra. Porque ele não estava só. Abria todo um ciclo de dança contemporânea.
1. Les Tubes, Compagnie Na
Penso que o principal problema deste espectáculo não pertence a ele mesmo, nem enquanto ideia nem enquanto trabalho virtuoso de interpretação, mas antes no contexto em que foi apresentado. Se saber o que é ou não dança hoje em dia é um problema cada vez mais bicudo, uma vez que a promiscuidade cada vez maior entre as artes leva a uma contaminação de ideias e de técnicas salutarmente caótica, sempre há um mínimo de coesão e de identidade em cada arte. Dito isto, há que convir que o espectáculo agora apresentado em Lisboa teria muito mais razão de ser se introduzido num qualquer Aspectos da Mímica Contemporânea. Lá porque não há palavras e o meio de expressividade é o corpo, isto não nos leva automaticamente a um objecto coreográfico.
Voltando agora para a obra em si, o que me ocorre dizer é que o que é mais extraordinário e mais prazeiroso neste espectáculo é o virtuosismo dos intérpretes no jogo constante da metamorfose tubular. Eu explico. Ali não havia corpos humanos. Antes umas formas estranhas e em constante mutação: os tubos. O que é fascinante é nós sabermos que quem anima aquelas formas disformes são pessoas com cabeça, tronco e membros, ideia que por vezes parece ser inteiramente absurda perante aquilo que vai acontecendo em palco. A ilusão é total, a dramaturgia excelente, a interpretação óptima. Mas fora a técnica e a descoberta desta fórmula, a coisa vai perdendo a pouco e pouco a piada. A peça é como que uma História da evolução dos Tubos (enquanto seres vivos) e seus conflitos de crescimento. Isto é, para além de termos de ver os eternos conflitos de amor/ódio, brancos/negros, masculino/feminino, criança/adulto (que não têm nada de mal em si, o pior é o modo como se tratam estes temas), os quadros em que os temas vão surgindo tornam-se cada vez mais repetitivos e previsíveis. Ou seja, a honestidade, virtuosismo e inovação de um exercício difícil, aliado ao pedagogismo do conteúdo e formalizado de forma explícita e repetitiva, fazem deste Les Tubes um óptimo espectáculo para crianças. De mímica.
2. Disfigure Study, de Meg Stuart
Sobre este espectáculo já disse mais ou menos tudo o que tinha a dizer na série de artigos sobre o Klapstuk Festival. Acrescento apenas que as alterações introduzidas na peça, principalmente no solo final de Carlota Lagido, com menos improvisação, tomaram-na mais coerente (muito embora aquele fim com o Francisco Camacho a afastar-se continue a não ser assim grande coisa no meio daquilo tudo). Outras alterações houve mas desta vez a nível da produção. Primeiro, a Sala Polivalente do Acarte, bem diferente da sala de estreia em Lovaina, revelou-se valorizadora para a coreografia e o desenho de luzes de Randy Warshaw só ganhou com isso, tornando-se muito mais eficaz do que na Bélgica. A segunda grande alteração foi no entanto bem negativa: a produção optou por não trazer o músico Hahn Rowe que normalmente acompanha ao vivo, com a sua guitarra e violino, este espectáculo. Não há dúvida que se perdeu demasiado em intenção e em beleza para se justificar monetariamente esta ausência. Há coisas que não têm preço. Principalmente na Arte.
3. Mel, de Clara Andermatt
O que para mim é espantoso nesta nova coreografia de Clara Andermatt, produzida expressamente para este ciclo. é o modo certeiro e cru com que a coreógrafa vai ao cerne da questão de se ser ser humano: comer ou ser comido são as opções básicas que estruturam qualquer comportamento: a antropologia e a psicanálise bem o têm mostrado para quem quer ver. Com tão crua visão de nós mesmos, a metáfora exacta desta eterna caçada será obviamente o sexo. Não como “sublime momento de tremor sensual dos corpos apaixonados em voluptuosas carícias”, mas como ritual canibalesco onde o que salta à flor da pele são os fantasmas em jogo no contacto carnal de dois seres. Daí as mesas do cenário, daí as situações em volta do comer: José Jimenes que obriga Carlos Gomes a comer, Joana Novaes que devora o corpo de Carlos Gomes, alguns movimentos autofágicos tendo por objecto a mão (o que remete curiosamente para o solo final de Carlota Lagido em Disfigure Study e propõe uma universalidade simbólica muito flashante). Se pudesse fazer uma citação para exemplificar esta minha interpretação, escolheria o duo entre José Seabra e Carlos Gomes em cima de uma mesa: está lá tudo concentrado: desde a intimidade devassada pelo hábito, até às sinaléticas fálicas e outras do nosso imaginário mediterrânico. De tudo isto e da força dos bailarinos gostei muito. Mas tenho vários senãos ao espectáculo também. O primeiro tem a ver com o modo como os vários quadros estão ligados. O black-out do fim da cena inicial onde os bailarinos se ajoelham a um galo divino, ficou com um ar um tanto tosco com os bailarinos e técnicos às pressas a tirar o galo e a correrem de um lado para o outro; o fim do referido duo Seabra/Gomes com o resto dos bailarinos a entrar em cena aplaudindo como que para marcar um fim (que já lá estava, para quê realçar?) é outro exemplo que me ocorre. Outro senão tem a ver com os objectos cénicos que são tão feios que nem as luzes de Daniel Worm D’Assumpção conseguiram dar outro aspecto. Finalmente parece-me que Clara Andermatt ainda mantém uma oscilação muito grande dentro do seu trabalho com encontros e perdas de fios condutores e ideias, o que tem como resultado final um desequilíbrio estético e uma menor eficácia na transmissão do conteúdo. Mas a sua abordagem, a impor este caminho, é única em Portugal. Que é o que se quer. Ou não é?