KLAPSTUK’91 TERCEIRA PARTE: FIM DE FESTA
Apenas com a “intromissão” das companhias Nadir e Rosas, a última semana do Klapstuk 91 esteve entregue a sete coreógrafos portugueses. “Os Novos Portugueses”, uma presença integrada na Europália Portugal ‘91.
1. Bárbaros do Sul
Francisco Camacho, Joana Providência, Vera Mantero, Rui Nunes, Aldara Bizarro, Paulo Ribeiro e João Fiadeiro, foram, por ordem de estreia, os coreógrafos convidados por Bruno Verbergt, director do Klapstuk Festival, a participarem na edição deste ano. Com a excepção de Vera Mantero e de João Fiadeiro (que apresentaram estrelas mundiais – João Fiadeiro fez uma completa reformulação da sua obra), todos os outros trabalhos tinham já sido apresentados em Lisboa. Falar de todos exaustivamente é redundante nalguns casos mas necessário noutros. Vou então agrupá-los de acordo com as diferenças entre um “antes” (Lisboa) e um “depois” (Lovaina) na maturação e desenvolvimento das coreografias e em relação às estreias mundiais.
As Marias e os Papelinhos, de Aldara Bizarro e Sustine et Abstine de Joana Providência
Na coreografia de Joana Providência, a primeira grande mudança era imediata: o cenógrafo Philip Cabau operara uma radical transformação do ambiente cénico, retirando as faixas de relva à frente e ao fundo do palco e optando por um sóbrio tratamento do chão com o traçar de linhas e sinais, algures entre as receitas de livros de corte e costura, as indicações das pistas de aviação e a marcação de jogos infantis. Opção que, na minha opinião, esclarece de forma pertinente o esquematismo da coreografia. Depois, mal começa a peça, a segunda alteração de fundo: os novos figurinos de Conceição Abreu, saídos directamente de um conto de fadas, acentuam a ideia de rigidez formal contrastante com a doçura orgânica do quarteto de cordas Opus 127, de Beethoven, e do próprio movimento. Finalmente, na própria coreografia, foram retirados alguns elementos, como o acorrentar das bailarinas. No entanto, creio que Sustine et Abstine nunca mais encontrou a harmonia interna presente na sua forma inicial, a “parcela A” da coreografia A, B, C, Mais, co-autoria de Paula Massano. O momento de ruptura que a entrada de um terceiro elemento (aqui, Aldara Bizarro, substituindo Joana Providência, que dançou a parte de Carlota Lagido) em cena – personificação do coreógrafo – altera definitivamente a leitura que se faz até então da peça: reenquadra ironicamente o próprio movimento. Mas terminada essa intervenção, tudo cai de novo, num deixar ir gestual que perdeu já o sentido. Os minutos finais continuam a pesar muito no visionamento da obra. Afinal, o mesmo problema que já se sentira em Lisboa.
Aldara Bizarro, por seu turno, parece ter sido mais certeira nas correcções que se impunham fazer na sua coreografia. Retirou elementos desnecessários, limpou, foi directa ao assunto. Casos exemplares: o desnudar sem rodeios de Mónica Lapa (que penso ser, neste momento, uma das boas bailarinas portuguesas, pela qualidade de movimento e concentração na interpretação) e a melhor ligação com a música. A coreografia deixa-se correr melhor.
A questão agora é no que está a ocorrer no palco; ou seja, a questão agora é estética e não técnica. E, esteticamente falando, parece-me que As Marias e Papelinhos, quer na forma quer no conteúdo, é uma obra destituída de interesse. Pode ser clara nos seus propósitos mas é pobre, recorrendo a lugares comuns estafados e radicalmente distante do que se propõe no texto de apresentação do programa: dadaísmo não existe sem anarquia e provocação; narcisismo não é apenas exibicionismo.
O Rei no Exílio, de Francisco Camacho; A Ilha dos Amores, de Rui Nunes; Modo de Utilização, de Paulo Ribeiro.
O Rei no Exílio foi a peça que abriu o ciclo “Os Novos Portugueses”. A peça ganhou muito com a escala do teatro e com a maior profundidade do palco, factores que forneceram imediatamente uma melhor leitura ao desenho de luzes de João Paulo Xavier. Este segundo visionamento de O Rei no Exílio revelou ainda melhor o modo certeiro e cuidado como Camacho desmonta sacramentalmente a figura semidivina do Rei e, por osmose, do Poder como força encarnada, indissociável a um corpo. Mas revelou também a necessidade de um melhor tratamento de alguns elementos: a capa, que por vezes perturba, e a pasta, elemento visual e sonoramente importante e que é esquecida. Entretanto, pode ser que um dia se volte a ver por cá uma das melhores obras da dança portuguesa contemporânea.
Rui Nunes estreou na mesma sala: mais uma vez o espaço foi determinante na leitura da obra. Mas aqui de forma contrária. O carácter “de câmara” da coreografia, dado pela música e principalmente pela envolvência do cenário de Félix Marques, perdeu-se irremediavelmente e distorceu a atmosfera de clausura que se conseguira em Lisboa. A “Ilha dos Amores” fragmentou-se, tornou-se num arquipélago de imagens e sons e perdeu de certa forma o sentido. Uma ilha dos amores povoada por homens que se representam na abstracção poética da dança e que se definem como próprio objecto de desejo é sempre uma ilha interior, metáfora de uma intimidade que apenas o nosso olhar, para cá do palco, desvenda. Neste sentido, as luzes (também de Félix Marques) ajudaram pouco na definição desse espaço íntimo de desejo, de procura e de sonho.
Pouco tenho a dizer em relação ao que já disse sobre Modo de Utilização, de Paulo Ribeiro. Após vários visionamentos da obra, fica-me principalmente a ideia de que alguns problemas que já apontei como sendo da composição (principalmente na terceira parte) serão afinal e basicamente de inspiração na interpretação. Há dias em que tudo faz sentido. Outros em que fica no ar uma certa indefinição da personagem que se nos apresenta.
Perhaps she could dance first and think afterwards de Vera Mantero e Um solo para dois intérpretes de João Fiadeiro.
Tenho esta praga de não poder escrever, por elementares princípios éticos e deontológicos, sobre Vera Mantero. Tenho também o dever de vos informar. É o que vou fazer. Elementarmente. Nesta improvisação de vinte minutos, o silêncio é intercalado por Ruby My Dear de Thelonius Monk, o cenário é meu, o figurino é de Vera Mantero, as luzes de João Paulo Xavier. E pronto. Qualquer dia escrevo mesmo o que penso e honi soit qui mal y pense.
Em comum com o work in progress apresentado em Lisboa, a obra de João Fiadeiro tem apenas os figurinos e os elementos cénicos de Marta Wengorovius. A estreia em Lovaina contou com a agradável surpresa da presença da música ao vivo do Miso Ensemble. A peça, como já aconteceu em obras de João Fiadeiro, inicia-se antes mesmo de começar, isto é, logo à entrada do teatro. Desta vez uma grande (dois metros de altura por um e tal de largo) caixa panóptica atraía a curiosidade do público: pelos orifícios na superfície duas visões: ou o próprio olho ou um dos bailarinos; como complemento, um som insistente emergindo lá de dentro. Se as ideias de alteridade e de identidade, do eu e do seu duplo, ou seja, o arquétipo dos gémeos, são as linhas-mestras explícitas do conteúdo da coreografia, então algumas manipulações simbólicas quer a nível do movimento (rotações sobre um eixo dos dois bailarinos – Fiadeiro e Nuno Bizarro – no início e fim da peça) quer na própria introdução (cá para mim é uma clara representação fantasmática da vida intra-uterina) vão de encontro a tudo que é mito de origem. O que é psicológica e antropologicamente interessante.
Mas mais uma vez temos a questão estética em acção e com ela a da apresentação de uma obra em palco. No capítulo luzes, cenografia e música não há nada a dizer: todos os elementos se encaixam e jogam entre si harmoniosamente, criando uma coerência por vezes rara de se encontrar. A nível propriamente coreográfico creio que a peça é bastante esgotante e redundante para o espectador por um prolongamento sempre excessivo de cada secção que o compõe. Excesso que por seu lado não se coaduna com os trinta minutos da peça. Se a ideia era exaustão e repetição, então o suporte temporal teria de ser grandemente ampliado. Creio também que estamos perante uma viragem na linguagem de João Fiadeiro, o que poderá explicar em parte as hesitações do projecto.
Nota final.
Se vivêssemos noutro país, eu terminaria as linhas sobre Fiadeiro com “a ver vamos”. Em Portugal tenho de dizer “esperemos que um dia se veja”. É pena que assim seja porque no Klapstuk viu-se bem na especificidade e força destes coreógrafos que pela luta, originalidade e inovação merecem o título de Bárbaros do Sul: os que não se expressam na linguagem normalizada do Norte civilizado. Mónica Valenciano é, neste sentido, mais uma bárbara.
2. Quaderni In Atta Vo, Companhia Nadir
O pior espectáculo do festival foi protagonizado por esta companhia de Veneza suportada por uma série de entidades francesas. O amadorismo de tudo é ridículo. E como tenho pouco espaço fico por aqui (há de facto coisas a mais no mundo).
3. A festa da festa
No seminário que o Festival organizou destinado à crítica de dança, que reuniu sociólogos, psicólogos, filósofos, críticos, directores de festivais e amantes da dança, o crítico do Expresso António Pinto Ribeiro afirmou que um Festival é bem sucedido quando supera a sua função de apresentação de espectáculos. Quando se torna em Festa, diria eu. O Klapstuk’91 foi tudo isso: cumpriu rigorosamente a sua função de produtor/apresentador e extravasou-a na festa da Arte. As actividades paralelas – cinema, videoteca, conversas com os criadores num café, o seminário – estimularam os contactos entre coreógrafos, performers, produtores e público. Bem longe do triste formalismo dos actuais Encontros Acarte.