EUROPÁLIA’91: QUATRO PARA KLAPSTUK
In BLITZ no350, July 16th, 1991 Graças aos bons auspícios do Teatro Nacional D. Maria II foi possível apresentar em condições mais ou menos dignas quatro das coreografias que estarão presentes no Festival Klapstuk em Lovaina, no âmbito da Europália’91.
1. Francisco Camacho e O Rei no Exílio
Como já acontecia para Quatro e o Quarto, onde o público aguarda o início do espectáculo ao som do Black Album de Prince, a sala já se encontrava preenchida de música logo à entrada. Desta vez Marianne Faithfull dava calmamente o tom, marcava o espaço.
O solo interpretado pelo próprio Francisco Camacho é a mais negra das suas obras. O rei exilado é D. Manuel II mas também é obviamente o autor/intérprete/personagem que nos surge envolto num manto real (um dos melhores figurinos de Carlota Lagido até hoje), walkman nos ouvidos, pasta tipo James Bond aljemada ao braço, cabeça quase raspada. E canta Yesterday com aquela voz mais ou menos oligofrénica comum a quem quer que cante com o som do walkman no máximo. A demência marca a sua presença cedo. Pois logo surge também a voz de Natália de Andrade, e Nick Cave, e Laibach. E sabemos que tudo não é mais do que ironia e decadência. Daí as vozes adulteradas, os vícios (café, whisky, cigarros a rodos), a mordacidade sobre as imperfeições da existência, como no caso do auto-retrato do autor, feito sobre o “trono” (um cenário muito sóbrio e eficaz de Philip Cabau) contrapondo-se ao retrato elogioso do Rei. O Rei no Exílio será a melhor obra de Francisco Camacho até à data. É uma obra sobre as componentes do poder centralizado no corpo, no corpo do Rei, que se adora e se exalta, que é obsessão para os seus súbditos (como mostram os textos da época ditos durante a peça). O corpo do Rei é o Cristo, e a sua morte a ressurreição da vida: o Rei está morto. Viva o Rei!
2. Aldara Bizarro e As Marias e os Papelinhos
Para já, há o cenário de Rui Pedro Pinto que marca o espaço formal e simbolicamente. É muito simples: um painel em cunha preenchido com dezenas de olhos invertidos e mais ou menos alucinados que nos olham o tempo todo. À direita, um banco apenas levemente tratado para dialogar coerentemente com o painel. E entre o cenário e a peça, assim como entre o cenário e a música e entre a dança e a música penso surgir a mesma ordem de discrepâncias. Vejamos. A coreografia vive de uma sucessão de momentos que encontram o seu tom e ligação graças à música original de João Lucas. Mas não me parece que estruturalmente a coreógrafa soubesse explicitar cada momento, os cortes ou relações existentes entre cada parte. Como resultado, uma sensação de inconsequência na visualização da obra. Muito embora as metáforas estejam lá: é o banco que afinal está cortado, é o cenário em cunha, são os desenhos de luzes angulosos, são as mudanças abruptas na música, é a nudez de Mónica Lapa (que dançou excelentemente na noite da estreia), são os olhos que nos olham. Mas estão apenas sugeridas e não plenamente utilizadas. Mas não há-de ser nada. As obras são para se irem construindo e tempo é coisa que não falta.
Um Ensaio Geral
é um Ensaio Geral
é um Ensaio Geral
Quis o destino que visse apenas o ensaio geral das duas obras que se seguem. E se teoricamente um ensaio geral deve ser já um espectáculo, já se sabe que o nível de concentração e execução nunca é igual ao do espectáculo a sério (mesmo com a sala a abarrotar de gente, como foi o caso). Descontos dados, é assim:
3. Joana Providência e Justine e Abstine
A peça de Joana Providência é uma reformulação da parte que lhe coube na obra colectiva feita com Paula Massano e apresentada no Acarte no início do ano. Entre duas faixas de relva artificial, sobre um espaço negro que se destaca na sua ausência de definição (o cenário é de Philip Cabau), vemos o duo Carlota Lagido/Cristina Santos entregarem-se à execução do movimento tão plástico como fluído de Joana Providência. A música é o Quarteto de Cordas Opus 127 de Beethoven e tudo resulta numa atmosfera romântica, e num ritual repetitivo e hipnótico mas onde os gestos já se libertaram do minimalismo mesmo que requestionado de Mecanismos. Duas partes se distinguem, separadas pela entrada da coreógrafa em cena. Para mim algo se perde após esta intervenção bem-humorada. A introdução das correias que tolhem o movimento de braços das bailarinas não se torna legível e o tom das luzes ajuda a que o hipnotismo resvale perigosamente para o campo da sonolência. Felizmente a peça acaba antes.
1. Rui Nunes e A Ilha dos Amores
Um grande tonel cheio de sal, um grande tonel cheio de água onde flutua um barquinho à vela, um percurso de sal onde caminharão os bailarinos. Uma Ilha dos Amores onde habitam apenas homens. A Ilha dos Amores que Rui Nunes propõe é como a projecção utópica dos desejos de homens, dos homens viajantes (o mais belo arquétipo mediterrânico desde Ulisses), e logo deverá ser sempre povoada pelos seus corpos, pelas suas presenças. Os fantasmas, esses, não se vêem; escondem-se no país dos sonhos, no labirinto da mente.
O movimento de Rui Nunes é belo, e opta pela utilização de saltos mais ou menos improváveis, a presença de quedas, desequilíbrios e voos, para nos remeter para o universo do sonho. A viagem será a de Ezequiel Santos, ponto de referência em função do qual se movimentam os outros três bailarinos (Miguel Pereira, Paulo Jesus e Rui Nunes), que literalmente o fazem planar num friso de marinheiros. O desejo deixa-se ficar latente.
Nota final
A falta de uma política de apoio à dança por parte da Secretaria de Estado da Cultura torna cada vez mais provável a um cidadão de um qualquer país europeu assistir a um espectáculo do que de novo se faz na dança portuguesa do que a malta cá da terra. Por isso a pequena Sala Gil Vicente do TNDMII foi insuficiente para albergar o público curioso de ver as últimas produções de Francisco Camacho, Aldara Bizarro, Joana Providência e Rui Nunes. O que só mostra das virtudes do nosso secretário de Estado (apenas ele foi o responsável pelo veto às verbas requeridas para estes projectos que representarão Portugal na Europália, que tinham parecer favorável da Direcção-Geral da Acção Cultural – valha-nos Jack Lang!) e da louvável iniciativa do Instituto da Juventude que subsidiou em cerca de 50% os custos de produção de três das quatro obras apresentadas.