MOVIMENTO EM FALSO
Nada mais triste do que um teatro vazio. Com mais dezasseis pessoas na sala do Teatro São Luiz, este vosso escriba viveu momentos constrangedores no primeiro dia do mês de Fevereiro… ... onde, em palco, a Companhia de Dança de Lisboa apresentava mais um programa maioritariamente português. Talvez a única nota de mérito numa encruzilhada de equívocos e contingências que redundou nesta tarde triste. Eu explico.
Desde que comecei a escrever sobre dança neste entrópico pasquim tentei sempre manter-me o mais possível acrítico em relação às instituições promotoras dos espectáculos. Quando me referi a elas foi em relação a aspectos extra-artísticos (por exemplo, o critério de convites de jornalistas pelo serviço Acarte que acha que vocês, fétidos leitores do BLITZ, jovens e rockeiros que são, não têm cabecinha nem educação para perceber esta coisa da arte com A grande e por isso não merecem informação). Gosto de me concentrar sobre a obra artística em si. Gosto de a desvendar e de a dar a conhecer. Penso ser esta a missão do crítico.
Mas o programa agora apresentado pela CDL faz-me pensar que, por mais que queiramos a arte não é imune às instituições que as suportam. E o que ressalta deste espectáculo, díspar nas opções das peças que o constitui, infeliz na escolha da data da sua realização, errado no casting de algumas coreografias e mesmo do local de apresentação, é o momento particularmente frágil pelo qual passa agora a CDL. É importante que se diga que a Companhia de Dança de Lisboa tem sido uma das instituições mais abertas à experimentação na dança portuguesa nos últimos anos. Foi a CDL quem primeiro teve a coragem de arriscar nos novos coreógrafos portugueses que surgiram nos últimos anos, convidando-os sem medo a coreografar para os seus programas regulares. Rui Nunes, Vera Mantero, Francisco Camacho, Paulo Ribeiro tiveram aí a sua “chance” de trabalhar com uma companhia. Carlota Lagido o de iniciar e desenvolver um estilo como figurinista. Isto é um mérito que ninguém pode retirar a esta companhia. Mas neste momento não chegam as glórias passadas.
Há sem dúvida alguma e antes de mais, uma falta de rumo na CDL. A falta constrangedora do público deve ser vista como um triste sinal disso mesmo. É totalmente indesejável, numa casa que tem todas as condições para ser um sólido suporte para a formação de bailarinos portugueses e para o desenvolvimento de um trabalho sério da maioria dos grandes nomes da actual dança contemporânea portuguesa, que as coisas se mantenham assim por mais tempo.
A companhia carece com máxima urgência de uma direcção artística. Isto porque a incoerência da programação faz correr o risco de a CDL ficar associada a uma imagem de instituição flutuante, mudando de rumo ao sabor das ondas e dos dinheiros e dos espaços disponíveis. O que não quer dizer necessariamente que o seja. Mas parece.
A CDL começou o ano a apresentando uma coreografia de Paula Massano no Acarte (que ainda é o local onde se vê a melhor programação de dança em Portugal, logo o mais prestigiado). Que o seu segundo programa da temporada seja este é um perfeito absurdo artístico, político, de marketing, ou o que se queira. Os motivos desse absurdo são as próprias coreografias e a sua apresentação conjunta. O segundo motivo é um problema de direcção que talvez possa ser resolvido com a anunciada direcção artística da companhia por Paulo Ribeiro. Do primeiro ponto, fala-se já de seguida...
1. “Devias ter deixado a luz acesa”, de Lionel Hoche
Um homem e uma mulher entrelaçam-se em lugares comuns das coreografias que mostram os lugares comuns da vida/tensão que constituem uma relação heterossexual. Já a tinha visto dançada por Maria João Pires e Paulo Jesus que, na minha opinião formam actualmente o “par” da companhia. Também deve ter sido a opinião de Paula Massano, como se viu em A Bailarina do Mar. Parece-me que neste casting não terá sido muito feliz a escolha de Vítor Garcia e Cláudia Pereira. Isto porque, não sendo esta uma coreografia nem muito feliz, nem muito inspirada, nem sequer muito bem acabada, a sua possível salvação residiria na construção pelos intérpretes de um tecido dramático capaz de dar forma e consistência à relação das “personagens” em jogo (uma vez que o coreógrafo não o conseguiu fazer). Aqui surgiu o desequilíbrio comprometedor da legibilidade da peça: pois se Vítor Garcia foi capaz de criar e manter uma personalidade coerente, Cláudia Pereira já não o conseguiu.
Cláudia Pereira transmite uma certa imaturidade, que o contraste de idade com o seu par acentua; não soube no entanto aproveitar-se desse facto para dar sentido à sua interpretação e consequentemente à coreografia.
Que, de resto, é desinteressante. Recorre a um despojamento cénico – que não deixa de ser eficaz – na tentativa de realçar a exposição daquele par que se nos mostra nas suas paixões, medos e pulsões, mas é francamente banal e desinspirada na criação e encadeamento de movimento. A banda sonora sobre a música de Eve Couturier, Jean-Jacques palix e Elliot Sharp, com Humphrey Bogart em antológico diálogo com Laureen Bacall (aquele do You know how to whistle don’t you? Just close your lips and blow) é redundante. Os figurinos de Lazare Garcin são feios. O programa nada nos diz sobre a autoria de cenários e luzes (que são ainda as propostas mais conseguidas para o que se pretendia), o que não deveria acontecer.
2. “Maravilhas de um país de Alice sem história” de Conceição Abreu
Foi a melhor coreografia da noite. Mas isto talvez não queira dizer muito. Já fora apresentada no Concurso Coreográfico da COL em Maio de 90, com relativo sucesso. O que concorre para a tornar um produto acabado é principalmente o cuidadoso envolvimento plástico e sonoro com que se rodeia. Os figurinos são bonitos {Conceição Abreu é uma boa figurinista), a música boa é bem encadeada – Nyman; Baccherini; Bach – o cenário e elementos cénicos (novamente de autoria desconhecida, o que é imperdoável em todos os sentidos) remetem para os elementos chave do universo de Alice. Para mim, no entanto, o que foi inesperado neste novo visionamento de “Maravilhas...” foi o curioso fenómeno de envelhecimento da peça Curioso ainda mais porque fui, como membro do júri de selecção do referido concurso coreográfico, um dos seus “apoiantes”.
Parece-me que, no seu trabalho, Conceição Abreu consegue entrar na obra de Lewis Caroll com inteligência, retirar dela os elementos-chave, reorganizá-los num novo universo de sentido numa linguagem ultra (embora estrutural e psicologicamente próxima do “non-sense” da matriz literária), envolvê-los plástica e sonoramente criar um guião e... perder o pé ao coreografar a sua ideia no interior de um esquema formal que proliferava então (e ainda prolifera, com diferentes graus de sucesso) entre as alunas recém-saídas do conservatório nacional: um gosto pelo minimalismo, a preferência para os uníssonos, um depuramento da carga dramática de gestos e uma consequente polarização simbólica em determinados (normal poucos) elementos cénicos (sapatos, cadeiras, peças de fruta, copos, cigarros e coisas do género).
Era um estilo e era uma moda. Mas era também e principalmente um ponto de partida, pois é um esquema terrivelmente frágil. Que ele se mantenha como uma opção estética não questionada é que não desejável. Por mais que os jurados aplaudam.
3.”A Preto e Branco com cores” de Victor Garcia
Victor Garcia, como bailarino, é o marco na Companhia de Dança de Lisboa e mesmo no pequeno mundo da dança portuguesa. E como coreógrafo já tinha deixado marcas de inventividade e criatividade, sendo particularmente feliz na exploração de movimentos. Por isso, sinto-me francamente incomodado por ter que o dizer mas é o meu dever: esta coreografia é má. É conceptualmente básica e esteticamente foleira.
Há algo de profundamente errado no envolvimento extracoreográfico de A Preto e Branco..., facto que se reflecte mesmo nos desgraçados figurinos de Conceição Abreu (essa mesmo, quem eu disse ser uma boa figurinista!).
A fila de pirâmides transparentes com luzinhas audio-sensíveis constantemente transportadas de um lado para o outro, o contraponto das vozes off (de um lado os bailarinos, esperançados, desejosos de um mundo e uma vida melhores, do outro as vozes de Mário Crespo e Carlos Fino trazendo a catástrofe real de um mundo terrível e cruel), a metáfora dos manequins apelando à futilidade das gentes através da utilização de movimentos baseados na Vogue Dance (remetendo também para outro lugar comum: o da homogeneização dos costumes, gostos e gestos ocidental) são sem dúvida fruto da melhor das intenções de Victor Garcia, quer éticas, quer estéticas. Mas pura e simplesmente são feias e inadequadas na transmissão da mensagem.
Em termos de movimento, encontra-se ideias e fluidez, mas penso que se Victor Garcia pretende de facto coreografar, deverá evitar os critérios estéticos porque se regeu na feitura desta obra. São do pior que há.