DANÇA NOVÍSSIMA? PARTE II
In BLITZ no316, November 20th, 1990 No convento do Beato, nas noites de 31 de Outubro e 1 de Novembro, estiveram os seleccionados do concurso coreográfico promovido pelo Comissariado Português para a Europália’91, vulgo Novíssimos. Os de que o BLITZ já falou e os outros que se seguem.
3. José Laginha
A coreogafia estrutura-se em torno da tensão plástica criada pelo grande figurino negro à direita do palco, que liga ao mesmo tempo três bailarinos, e a exploração do espaço através do jogo de luzes. Cinco bailarinos ocupam e exploram o palco de forma inteligente e a música de Nuno Rebelo cria um ambiente coeso e, no essencial, bem conseguido (a fórmula da banda sonora já fora explorada por Paulo Ribeiro em Taquicárdia).
Objectivamente, a coreografia Dos items dos íntimos enreda-se com alguns problemas de equilíbrio perdendo-se por vezes no jogo dos vários elementos que concorrem para o sentido da obra. A utilização das luzes como elemento significante e a figura ligada pelo enorme figurino preto à direita do palco, têm bastante peso na direcção da atenção do espectador e por isso deveriam ter sido alvo de maior atenção por parte do coreógrafo, que por vezes parece esquecer-se do que em espectáculo não pode ser esquecido.
Mas não é grave. O que importa é que José Laginha soube assumir e impor a sua ideia de movimento e a sua ideia de dança, sem se preocupar com maneirismos ou tiques, e este foi o seu trunfo principal. Bem como as interpretações de Amélia Bentes, Sofia Neuparth e do próprio José Laginha, que formaram um trio pujante e inspirado, o que muito ajudou a levar a bom termo a primeira grande incursão na coreografia a título individual de José Laginha.
4. Rui Nunes
Generosidades da alma foi a mais bem conseguida coreografia apresentada na mostra. Rodeada por um cuidadoso envolvimento cénico, onde o desenho de luzes e o cenário simples e eficaz de Félix Marques e os figurinos de Rosa de Freitas, executados por Augusta Castelo, contribuíram de forma decisiva para a criação do ambiente desejado, Rui Nunes e o actor João Cabral deram corpo a uma exploração inteligente das relações de poder que se estabelecem entre dois homens.
No início, todo o palco é delimitado por carradas de penugem branca e lindinha, ao centro dois montes de mais penugem branca. Começa com uma introdução musical onde se ouvem tiros, gritos e uma cacofonia musical. Surgem os bailarinos. E surge Salazar com a sua vozinha de tia beata. E enquanto fala o “Pai da Pátria”, rolam os bailarinos por entre os montes de brancura e levantam penas e mais penas e o ar fica todo branco. As metáforas que irão surgir são inesperadas e inteligentes: os piões que se devem manter em movimento, a música bélica, o “pai” levando o “filho” pela mão (se quisermos seguir a imagem proposta pelo próprio coreógrafo. Mas pode ser também e mais simplesmente o homem dominante vs. o homem submisso), o estaladão final, resposta a uma oferta.
Na minha opinião, a contradição surge precisamente na escolha de Salazar como paradigma fantasmático do tirano. Pois Salazar era um tirano simbolicamente “passivo” (ou, psicanaliticamente, “feminino”). Nada de monumental, fálico, visivelmente violento, mas antes a imposição da sua férrea vontade com as falinhas mansas dos brandos costumes. Aqui, penso que Rui Nunes terá que repensar os paradigmas por que se rege. Depois, o próprio discurso escolhido me pareceu despropositado a nível de conteúdo. De resto, o movimento bonito, a boa execução e o apelo à memória colectiva criaram um bom momento de dança.