DANÇA NOVÍSSIMA? PARTE I

BLITZ 13 Nov 1990Portuguese

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No convento do Beato, nas noites de 31 de Outubro e 1 de Novembro, estiveram os seleccionados do concurso coreográfico promovido pelo Comissariado Português para a Europália’91, vulgo Novíssimos. Ao promover e anunciar um programa com os “novíssimos” coreógrafos da já de si Nova Dança Portuguesa, o Comissariado Português para a Europália’91 colocava-nos à partida, e estou certo que involuntariamente, perante uma situação no mínimo equívoca: sob o peso da responsabilidade de serem “jovens”, de estarem a concorrer para um concurso promovido pelo Estado (ou melhor, pelo governo, na pessoa da Presidência do Conselho de Ministros) para promoção externa do mesmo – em Bruxelas na Europália’91, de serem à partida seleccionados num concurso público, pretendia-se que estes “novíssimos” mostrassem o valor da sua arte e das suas propostas para a dança portuguesa. (Para os leitores a quem estas danças da nova dança faz lembrar, pela clareza, um texto hermético dos anacoretas do Sião fica o esclarecimento rápido: é assim: um novíssimo é um jovem que até pode ter trinta anos – concorre directamente com o jovem agricultor que pode ter até 45 – e que se dedica a fazer coreografia pela primeira vez ou não, podendo até já ter coreografado para uma das principais companhias do país ou não. Um “novo” pode ser ou não ser tudo isto ou nada disto. Ser novo é melhor que ser novíssimo. É simples.)
Não pretendo sugerir que este quadro se encontrava delineado na cabeça dos seus promotores. Mas o peso das palavras Europália e Novíssimos, bem como Nova Dança Portuguesa e ainda Bienal Universitária de Coimbra (que “malgré” Santana Lopes sempre se realiza) é grande. Se estes considerandos são longos e fastidiosos penso que devem ser feitos pois eles marcam o contexto de uma iniciativa que, sendo incontestável e absolutamente louvável, no modo como surge leva sem dúvida o público, a crítica e principalmente os próprios criadores, a equívocos vários. Penso que só assim se compreende as obras apresentadas. Só assim se percebe porque os novíssimos arriscaram tão pouco e porque dois deles se mostraram antes como mimos pouco imaginativos de modas e de tiques da dança “como deve ser”.


1. Susana Vassallo e Silva

O problema principal da coreógrafa parece ser o de manter o fio condutor narrativo a que se propôs: o da exploração temática do tema da libertação e do “ciclo simbólico da vida” segundo a escultura de Canto da Maia. Aqui reside o primeiro equívoco. É natural e mesmo comum que os artistas se baseiem no seu processo criativo em “âncoras” temáticas, referências para estruturação da obra, a partir das quais desenvolvem e articulam o seu discurso estético. Também é comum que esse fio condutor que estruturava a lógica do processo criativo nunca chegue a atingir o público ou ser patente na obra final. Não há problema nenhum nisso, é uma forma como outra qualquer de criar.
Mas quando se apresenta uma coreografia com o título Amour qui passe, amour qui reste e o subtítulo O movimento na escultura de Canto da Maia e a estes se junta no programa um texto onde se apontam os “momentos” da coreografia e o que eles pretendem ser, então há que ter mais cuidado. E tudo fica bem mais complicado quando o produto final se mostra totalmente desligado da proposta inicial feita ao público pelo título, subtítulo e texto da coreógrafa.
A aposta de Vassallo e Silva foi claramente na exploração formal dos temas, penso eu, uma vez que pouco mais há na coreografia do que algumas “poses” (que supõe-se serem inspiradas nas esculturas já referidas) e um dançaricar para encher o tempo e o espaço. O movimento pretende-se enquadrar na “onda minimal”, gerada depois dos trabalhos de Amélia Bentes, Ângela Guerreiro ou Joana Providência, vindos a público no ano passado, mas não passa disso mesmo: uma tentativa de agradar pela repetição desinspirada de uma fórmula que teve sucesso entre a crítica e o público. O problema de Vassallo e Silva não é o de fazer o que já foi feito (a escolha da música é irritantemente previsível) mas o de utilizar sem qualquer interrogação ou sentido de procura aquilo que é antes de mais uma linguagem e que por isso se presta à exploração e nunca à cópia. O resultado é desapontante. Os bailarinos executaram correctamente e Oswaldo Pereira e Ricardo Holbeche, pelo menos na segunda noite, superaram as suas parceiras. Os figurinos e as luzes não primaram pela beleza.


2. Miguel Pereira

Segunda coreografia da noite, segundo caso justificativo de todo aquele preâmbulo hermético que ninguém de bom senso terá lido até ao fim. Existe uma coisa chamada teatro-dança (sim, ignaros leitores do BLITZ: a Dança é um mundo). E existe outra coisa chamada a nova dança belga e dentro da nova dança belga existe uma menina chamada Anne Teresa de Keersmaeker que é um génio e faz peças que são obras-primas da arte contemporânea. Nessas peças, os bailarinos falam, dançam, fazem movimentos mais ou menos absurdos, não fazem nada, rebolam-se, cantam, choram, berram e tudo é harmonioso, belo e terrivelmente, coerente.
Ora bem, Miguel Pereira reside actualmente em Bruxelas, onde trabalhou e estagiou com vários coreógrafos dessa nova dança belga. Montou uma peça com fortes influências do teatro-dança europeu. Mas não criou uma obra. Se a utilização do espaço cénico foi a princípio inteligente e bela, com a exploração das arcadas do claustro do convento do Beato pela luz de velas, o que auspiciava algo de eventualmente interessante, o decorrer da coreografia veio revelar uma total incapacidade criativa.
Todos os “clichés” estão lá. Os eterníssimos sapatos que se calçam e se descalçam sem razão aparente (simbólica ou coreográfica) a não ser a de ser “o” lugar comum da dança-teatro; o frenesim mais ou menos gratuito do movimento e das falas do género “questionar o palco, a vida, o eterno feminino, e já agora fazer um ar angustiado e lançar um brado de revoltazinha para tocar o público”; o passear das três meninas que se atiram ao chão, exploram o palco e olham o público; as diagonais obsessivas e esplendorosas; a paragem rápida do movimento com ar assustado tipo Oh!; o caminhar em direcção à luz e o correr para trás; a pergunta final “Tu m’écoute?” em jeito resumo da condição humana. Momento de inovação: as sempiternas cadeiras substituídas por um banquinho que também estava lá não se sabe bem porquê. Vive l’Europe.