CONFRONTOS ACARTE – PARTE II

BLITZ 25 Sep 1990Portuguese

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Na última semana dos Encontros Acarte percebeu-se que o público português tomou o gosto ao Buuu! Já somos europeus.

4. Jean-Claude Gallotta

A França é o país dos excessos, do quanto maior e mais colorido melhor. Entre a natureza e o homem, os franceses preferem o monumento. Racionalizar tudo excessivamente também faz parte do seu modo de ser, herança provável do Renato Descartes. Foi ele quem separou solidamente a mente do corpo, numa espécie de delírio racional-esquizofrénico. Desde então os franceses deixaram de perceber a unidade subtil dos corpos e desataram a criar monstruosidades estéticas (desculpem a redundância): pega-se de um lado em discursos altamente filosóficos e pesadíssimos, do outro em bombas eróticas e paixões animais, atam-se na glândula pineal e já está! Luas nas Valetas, pirâmides do Louvre, só se compreendem assim. Na pátria do estruturalismo a superfície é muito importante. A Bauhaus não tem nada a ver com França.
Será que vale a pena todo este discurso para falar do espectáculo de Gallota Les Mystères de Subal? Penso que sim, porque é a única maneira que encontro para entender o motivo pelo qual Gallota é considerado um dos génios da dança francesa actual.
O espectáculo vive da tecnologia do bom gosto limpo, brilhante, luzidio. As luzes de Manuel Bernard são de um rigor a toda a prova, os efeitos cénicos notáveis, o cenário tem definitivamente chic, a música sendo horrivelmente banal também é limpinha e aprumadamente irreverente quanto baste (Gallota é Jovem). Mas em termos estruturais a coreografia vive do nada. Gallota aposta na colagem de momentos providos de unidade própria, mas é sempre conveniente que, durante um espectáculo de mais de hora e meia, os 22 momentos que o constituem se unam num mínimo de coerência estrutural. Sem organicidade, sem uma lógica qualquer, uma coerência que se adivinhe ou apenas se deixe insinuar (quanto mais não seja o da lógica terrorista do cadáver esquisito, o que não é claramente o caso) é o vazio total.
Não me parece que Gallota seja uma pessoa totalmente destituída de génio e capacidade criadora (tem a enorme vantagem intelectual de saber rir de si mesmo). Mas o espectáculo que nos trouxe é fraco e os seus raros bons momentos aparecem mais como fruto da probabilidade estatística do que como resultado de uma procura estética. É nesta medida que surgem dois bons momentos: o solo do fauno decadente, por entre deliciosas ninfas, sonho e pesadelo de todo macho, e a ideia de ter um bailarino a tocar umas rockalhadas de vez em quando (neste caso só a ideia, atenção. A música era uma catástrofe). Os bailarinos são bastante bons e o senhor barbudo que por lá anda (o fauno) é de todos o melhor.
O resultado é um híbrido tecnológico, com fantasmas eróticos (para aquilo que os franceses consideram erótico) de permeio e muita mensagem pós-moderna.


5. DV8 Physical Theatre

Este interessante espectáculo de Lloyd Newson está nos antípodas de Gallota e de Saporta: exploração inteligente e comedida de recursos e, se o cenário é monumental, ele é simples, funcional e tem uma razão de ser no todo da coreografia. Esta estrutura-se numa exploração de memórias infantis, através de um mergulhar na memória dos bailarinos.
No início uma mulher, deitada no meio de um círculo de luz branca, o palco totalmente escuro. Movimenta-se devagar durante uns momentos. Depois, “black-out”, luzes subindo lentamente para surgirem os outros elementos deste universo fantástico que nos faz lembrar De Chirico e Max Ernst. Tudo girará à volta da exploração deste universo surreal. À livre associação de ideias alia-se uma exploração das memórias de infância. O aproveitamento de cordas que suspendem os bailarinos pelos ares, bem como a presença do bailarino no lado esquerdo do palco que obcecada e obsessivamente insiste em construir castelos de areia, os jogos, as brincadeiras, lutas, invejas e crueldade tão típicas desse infernal estado de ser que é a infância conjugam-se de forma inteligente para dar o ar onírico que se pretende.
Depois vem a decepção. Lloyd Newson quis explicar melhor a história e estragou a coerência e a magia da obra. Embrulhou-se com níveis de discurso e não soube desatar o nó. Os bailarinos vestem-se convencionalmente de branco e preto, para dizer que chegaram à vida adulta, e começam a dançar como deve ser. Por outro lado, ao querer resolver o problema do universo onírico onde até então se movia, surgem uma série de momentos onde confusamente se pretende mostrar o confronto da personagem feminina (a que no início aparecia só) com o mundo que existe do lado de lá do sonho. É feio e banal: portas que se abrem, e mostram “A Luz” e ela que fica como que hipnotizada e não sabe se há-de ir ou de ficar e lá vai ficando. Neste contexto, a ideia da utilização da imagem especular e do formalismo coreográfico como metáforas da ordem e da simetria que se opõem ao caos onírico do universo infantil faz sentido mas perde-se pela sua duração.
Se aceitarmos a partida as premissas que regem a coreografia passamos sem problemas a hora e tal de duração. Os bailarinos são muito bons, seguros, ousados e inteligentes na interpretação. O cenário é bonito e coerente e só é pena que o desenho de luzes se tenha ficado por um discurso pouco imaginativo e eficiente q.b. No plano musical confirmou-se uma vez mais o que parece ser a regra destes Encontros Acarte: o pauperismo.


6. O grande confronto: o Genial Jan Fabre

Jan Fabre é artista plástico. É também, e depois, coreógrafo. A obra apresentada no Grande Auditório da Gulbenkian é uma das mais inteligentes desmontagens daquilo que foi e daquilo que poderá ser a dança com D grande.
No começo confrontamo-nos com um palco despojado, puro de beleza azulada, mas não daquele azul eléctrico que até então viramos nas muitas coreografias apresentadas nestes encontros, o azul higiénico e asséptico da idade videotrónica. É antes um azul muito antigo, sujo, pesado, intencional, presente. Intensamente presente.
Nos extremos do palco dois homens enfiados em armaduras, sentados. Apenas sentados. Não nos olham, não estão naquela de marcar que “eles” estão ali e “nós” na plateia. Não. São seres que vivem naquele mundo e lá estão. Sentados.
Ao centro e ao alto, sobre um pequeno nicho, a completar o quadro (porque de um quadro se trata) e a simetria, uma mulher nua de costas voltadas para a parede. O eixo de simetria que divide mas estrutura a cena é o eixo de simetria que rasga e ao mesmo tempo une e suporta o seu corpo (qualquer corpo): a linha que divide as nádegas, a coluna vertebral. Aqui começa a beleza do olhar poético de Fabre sobre a natureza da dança e a natureza da arte: na base de ambas está o nosso corpo como sede e fonte de todos os fantasmas, de todos os símbolos. Arrepia-se. Sente-se que algo de extraordinário está para acontecer. E acontece.
De cada lado do palco surgem quatro mulheres, em perfeita simetria, enfiadas em armaduras. Irão movimentar-se em uníssono, cada metade a imagem especular (de espelho) da outra. O movimento é preciso, rigoroso, e repetir-se-á até ao fim da coreografia. Apenas muda o grau de exposição dos corpos: despem-se cada vez mais a cada início de um novo grande ciclo; mostram-se primeiro de frente e depois de costas para dizer que, se num eixo o nosso corpo é redundante (uma metade é a imagem da outra), num outro ele é inédito e estranho a nós mesmos: só o conhecemos por mediação. Jan Fabre joga com o tempo e no tempo. A exploração exaustiva (e garanto-vos que e mesmo exaustiva) de um mesmo movimento ou frase durante quase uma hora de espectáculo poderia remetê-lo para o minimalismo. Mas não é de minimalismo que se trata. Trata-se de uma vontade de comunicar um estado muito antigo e muito essencial da dança: uma espécie de hipnose, de estado transático. Mas ao invés do excesso de estímulos e frenesim rítmico, joga-se com a calma e a precisão de um ritual xintuísta. A figura é a da ascese. Em Vertigo, durante a primeira parte do filme, Hitchcock utiliza um processo semelhante para criar um universo simultaneamente fantástico sem ser fantasioso e um estado hipnótico sem ser transático. Se repararem bem, quando James Stewart persegue Kim Novak pelas ruas de S. Francisco, na primeira parte do filme, estas estão não somente sempre desertas, como acabam por ser sempre as mesmas. Só à terceira visão do filme é que me apercebi disso, bem como só já quase no fim da coreografia de Fabre nos apercebemos de que os movimentos das bailarinas são sempre os mesmos. Tal como Hitchcock faz no seu filme, Fabre, para pontuar a constância, faz ligeiras variações cénicas: a luz que aumenta ligeiramente de intensidade para logo voltar ao mesmo, alguém que entra em palco e quebra ligeiramente a simetria (a cena da lavagem dos cabelos com a imponderabilidade que acarreta é um bom exemplo), as tesouras (com todo o seu simbolismo) que descem do céu, os flocos de neve e, o belo, belíssimo, voo final do mocho (sim, verdadeiro) na cena vazia. Espectacular.


7. Olga Roriz. O desencontro

Foi à coreógrafa e bailarina portuguesa Olga Roriz que coube encerrar, com um solo de quarenta minutos, In-Fracções, estes Encontros Acarte. No percurso para o anfiteatro ao ar livre, e durante os primeiros minutos de espectáculo, nada faria supor que o fraccionamento da coreografia que o título deixava entender resultaria afinal num total e infeliz desmembramento do discurso coreográfico. Somos envolvidos desde a entrada no ambiente cénico. Música japonesa acompanha-nos até aos nossos lugares e aí, cercando a ilha e a rampa onde a bailarina se movimentaria, torna-se então claro que a preocupação-chave de Roriz e Nuno Carinhas é precisamente a integração dos diversos elementos do espectáculo.
O jardim da Fundação iluminava-se discretamente a verde e vermelho, a música espalhava-se por todo o lado e dava nova leitura a um espaço já conhecido (é esta uma das funções da arte: renovar o olhar; mostrar de modo novo o banal). Com a entrada de Olga Roriz em cena acentua-se a coerência e duvida-se do título: o figurino é lindíssimo, a contenção de movimentos remete-nos para o teatro kabuki, o ambiente é claramente oriental. Mas depois algo se passa a nível coreográfico que desmancha a teia de sentido tão habilmente composta por uma equipa que normalmente e ultimamente (estou a lembrar-me de Idmen B) funciona eficazmente.
Olga Roriz acumulará então um conjunto de movimentos, mais ou menos agrupados em pequenos momentos pontuados pela música (foi a melhor selecção dos encontros com John Cage a harmonizar-se perfeita e surpreendentemente com os Kodo) mas sem coerência e, pior, insistindo por vezes em “imagens de marca” (as palmas, alguns movimentos de braços, respiração).
O que me parece que se passa com Olga Roriz neste momento é a sua transformação numa espécie de estrela solitária no firmamento da dança portuguesa. (Não será por acaso que foi a primeira presença portuguesa em toda a história dos Encontros Acarte). E de toda a estrela, por definição, se espera apenas uma coisa: que continue a ser como o público a gosta de ver (ou julga que ela é, ou deve ser). Olga Roriz sempre soube criar uma forte coerência plástica, musical e coreográfica nas suas obras. Mas In-Fracções é uma obra falhada. Coisas do star-system?